Por: Padre Wilson Ribeiro.

Todos os anos os padres de todas as dioceses do mundo passam por dois períodos retirados de suas atividades costumeiras. Uma primeira atividade é o Retiro Canônico, onde os presbíteros se retiram em um lugar propício para a oração, reflexão, revisão de vida e do ministério, reabastecimento da Vocação, e reiniciar a Missão. Assim como Jesus que antes de sua Missão passou por um longo retiro de 40 dias(Mt 4, 1-11; Mc 1, 12-13e e Lc 4, 1-13), bem como se retirava para orar sozinho(Mt 14, 23; Mc 6,43 e Lc 6,12). O outro período é a Semana de Atualização Teológica, ou simplesmente Semana Teológica, onde os padres retomam algum assunto de sua formação acadêmica, ou assuntos atuais em termos de teologia. É preciso que o Presbítero seja um homem atualizado, se apropriando de novas linguagens, novos métodos e acompanhe o desenvolvimento do pensamento teológico. Não é um retiro, como o outro período mencionado acima, o intuito é o estudo, o aprendizado, relembrar assuntos e conceitos da teologia, bem como a convivência fraterna entre os padres e diáconos, em momentos de convivência, diálogo e recreação. Há também a oração, é claro, contudo, este não é o foco. O foco é mais voltado para o aprendizado e atualização.

Na última semana do dia 16 a 19 de setembro nosso clero de Santos esteve reunido em Águas de Lindóia/SP para a Semana Teológica contando com a assessoria do Pe. Elizeu da Conceição. Pe. Elizeu é padre Estigmatino. O assunto deste ano foi Antropologia Integral. Antropologia Teológica é uma matéria componente do Curso de Teologia. Pode ser que de faculdade para faculdade mude o nome, contudo o enfoque é estudar o homem no mundo e sua relação com o mundo, com os outros, consigo mesmo e com Deus.

Antropologia é a ciência que estuda o homem em seus vários aspectos, homem como homo-sapiens (homem animal que pensa) ou homo-laborem (homem animal que trabalha) entre outras. Estuda também sua origem e seu comportamento. Acontece que essas terminologias reduzem o homem a apenas alguns aspectos da sua vida. O Papa Francisco, retoma o Estudo da Antropologia e pede que se busque uma Antropologia Integral, não fragmentada, mas que estude o homem por inteiro em todas as suas dimensões, inclusive a espiritual.

Pe. Elizeu, partindo do Salmo 8 que pergunta “Senhor, que é o homem?” (Sl 8, 5) pergunta que sempre plasmou a humanidade e diversas culturas procuraram responder ao longo dos séculos.

Para responder a esta pergunta do Salmo 8, Pe. Elizeu retomou à criação do homem em Gn 2, 4-7, que aparece sendo plasmado do barro. Este episódio da escritura realça a etimologia do nome "homem". Em hebraico barro é "hadama" (אדסה), daí vem o nome do homem: Adão, em hebraico "Hadam" (אדס). "Hadam" não é apenas o nome próprio do primeiro homem, mas o substantivo utilizado em hebraico para se referir ao ser humano. Em latim esta terminologia se repete o "hominis" homem/humano é formado do barro ou "humus" em Latim. Sendo formado do barro o ser humano é um animal como os outros, mas recebe algo de diferente. Recebe o sopro de Deus em suas narinas que o tornou um ser vivente e dotado de capacidades diferentes dos outros animais. O sopro, em hebraico: ruah (רוח), também significa espírito. Por tanto, Pe. Elizeu relatou que o homem dotado do espírito de Deus é uma criatura única, diferente de todas as outras criaturas: feita do barro da Terra e do sopro/espírito de Deus.

O relato de Gn 2-4 demonstra que o homem em sua relação com a Terra, com a família humana e que ele é o construtor da história. Portanto, o trabalho, a relação com os outros homens, sobretudo na construção da família com a mulher, bem como na educação da prole passando valores e ensinando as tecnologias adquiridas com o tempo.

O homem formado do barro e do espírito é um modo de o livro do Genesis mostrar o grande drama humano. Sua finitude e sua infinitude. O barro vem da Terra, é frágil e sujo, ele remete a finitude do homem oriundo da Terra, fadado ao sofrimento e à morte. Contudo, possui algo a mais: é dotado de razão e comunicação, o que lhe garante a glória de se comunicar entre si e com o Deus que os criou. Tudo isso provém do sopro de Deus. O sopro ou vento vem do alto o que remete a tudo de divino que há no homem. Com isso, Pe. Elizeu nos mostrou que o homem não é apenas um ser desta Terra ou um ser-para-a-morte, mas um ser para a eternidade.

Pe. Elizeu nos relembrou a ontologia de Heidegger que diz que o Ser humano é um Ser-no-mundo. Mais do que um ser da Terra, Heidegger diz que o ser humano preenche tudo que está na Terra de significados, transformando o que é terreno em algo mundano. Isto é, o mundo é o contexto em que o homem está inserido. O homem é um ser histórico e circunstancial, por isso o homem vive no Tempo. Assim, a ontologia de Heidegger mostrar que por ser um ser histórico o ser humano também é um ser-para-a-morte, pois assim como tudo o que é histórico tem prazo de validade, dura no tempo, o homem também possui um fim. A morte e a característica mais essencial no homem e o ser humano e o único ser que se questiona por ela. Essa característica humana não deve ser para nós um drama ou algo de trágico, como diz Sófocles em Édipo Rei: "Mais valeria para o homem não ter nascido", pelo contrário, como sabemos que somos finitos o tempo que nos foi dado neste mundo deve ser vivido da melhor forma possível, deve ser aproveitado. Contudo, não foi isso o que aconteceu.

A filosofia de Heidegger infelizmente foi tomada pelo seu pior lado na contemporaneidade. A fenomenologia haideggeriana nos remete que cada indivíduo criando em um contexto possuirá uma visão de verdade a cerca das coisas. Porém, gerou também um grande relativismo ao passo que tudo se tornou válido e quando tudo é válido nada é verdadeiro. A carência de significados germinou no homem contemporâneo um nihilismo. Filósofos como Niezsche já falavam sobre este fenômeno. Como tudo se tornou narrativa, as opiniões se tornaram relativas, nada mais tem sentido. "Nihil" do latim significa "nada", remete ao nosso tempo onde nada de novo acontece, tudo é o mesmo sempre. Não há uma nova descoberta histórica como no passado, uma nova conquista, uma nova terra descoberta. Os valores tão bem estabelecidos no passado como: Deus, a moral, a família, a justiça, a verdade e a vida foram relativizados ao ponto em que tudo isto carece de sentido, tudo isto tende ao nada. Heidegger deu ao homem um grande presente: a liberdade de criar sua própria história sem ser escravo de narrativas previamente construídas. Todavia, a gloriosa tarefa de criar novos valores causou ao homem a falência de sentido na vida. Se somos ser-para-a-morte para que criar novos valores? Se tudo vai ter um fim, para que lutar por construir um mundo novo? Se somos uma piora no espaço, que há de grande assim em nós? O nihilismo também deu ao homem hodierno sua emancipação de Deus. "Se Deus não existe, tudo me é permitido." (Dostoiévski) Jean Paul Sartre utilizando-se da frase de Dostoiévski diz que: "É porque Deus não existe que tudo me é permitido." O homem moderno renunciou a Deus, seu criador, renunciou sua origem divina e não consegue mais transcender. Está preso a este mundo concreto, feito de terra. Não consegue mais olhar para o alto e perceber que "eles não são do mundo" (Jo 17, 14). O homem contemporâneo cansado e órfão se tornou afetado por este nihilismo que se manifesta na falta de esperança.

É preciso recuperar o ser humano deste nihilismo. É preciso voltar para a casa do Pai (Lc 15, 11-32). Trazer novos significados e nova Esperança para os homens. A mensagem cristã revela que não somos apenas ser-para-a-morte, somos criados para a eternidade. O ser humano não está fadado a encarar o sofrimento deste mundo sozinho. Deus se torna seu companheiro nesta jornada. A Revelação Divina relatada para nós nas sagradas páginas da Bíblia nos contam a história de um Povo amparado por Deus e de um Deus apaixonado por seu povo. Ele sempre conduz o homem para um caminho de superação. O homem é capaz de superar as angústias e tristezas deste mundo para alcançar a eternidade.

Mas como encontrar este Deus? Pe. Elizeu nos mostra que a carência de transcendência, o excesso de mundanidade (historicidade,circunstancialidade) causou no homem um excesso de imanência e uma incapacidade para a transcendência. O homem contemporâneo precisa reaprender a transcender. A transcendência e ir além do que vemos. O Ser-no-mundo de Heidegger já é uma transferência uma vez que os significados atribuídos as coisas não estão nas coisas mas em cada indivíduo que atribui significados às coisas (Transcendem as coisas). Contudo esta transcendência está presa ao indivíduo. A transcendência cristã está em olhar para dentro de si e reconhecer que dentro de nós habita o "ruah" divino que nos leva a olhar para o alto. Para um mundo além deste onde um novo céu e uma nova terra nos esperam. Por isso, vale a pena superar nossas angústias para merecer as alegrias. A tradição cristã não diz que a bem aventurança será vivida apenas após esta vida. Já aqui se pode experimentar a bem aventurança na solidariedade com os mais necessitados, por exemplo. A Fé que habita em nosso corações nos leva a transcender toda angústia em prol de um valor mais elevado. Kierkegaard já havia explicado sobre isso: a angústia abre para o indivíduo uma série de possibilidades, contudo só pela fé é que o ser humano supera a angústia.

Não há somente uma questão existencial, há também uma questão social que causa no homem contemporâneo este nihilismo. Pe. Elizeu nos lembrou que o Cardeal José Tolentino Mendonça afirmou que a ética contemporâneo hedonista gerou no homem uma Dilatação do Desejo. O ser humano hoje em dia só quer a satisfação de seus desejos. O mercado cria no homem desejos aos quais não são necessários aos homens, e mais ainda, hoje o mercado não quer criar apenas desejos, pois o desejo depende de cada indivíduo, o mercado quer criar necessidades comuns a todos. Uma das necessidades contemporâneas é a conectividade. Todos necessitam estar conectados, caso contrário, não se comunicam, não compram, não fazem cadastro no sus, não pegam ônibus, não aparecem nas redes sociais, "não existem". Em nossa época todos querem ter tudo. Há também uma passagem dos Direitos Humanos para o Homem de Direitos. Todos requerem direitos para si. O homem de direitos é um indivíduo que só tem direitos e nenhum dever. É preciso passar de uma Dilatação do Desejo para uma Educação do Desejo. Essa educação do dever ajuda os homens a aprender que nem tudo é satisfação de desejos. O mundo vai além disso. É possível superar os desejos supérfluos e ficar com os desejos mais essenciais para que assim a carência de desejos não satisfeitos gere frustrações no homem. O grade desejo da humanidade é o desejo de eternidade. O homem saciará sua sede na medida em que repousa sua paz e felicidade em Deus.

Outro assunto tratado foi a questão da inteligência artificial que é um desafio antropológico para a ciência e a teologia hoje em dia. Há um risco de o homem se tornar um ciborgue. Esta palavra vem da junção de duas palavras "cyber" que vem de cybernetic e "org" que vem de organismo. Assim o ser humano corre o risco de virar outra coisa que não mais um homem. Assim se expressou Heidegger quando na iminência da chegada do homem a Lua: "O ser humano renunciou ao seu ser deixando de ser homo-sapiens para ser homo-cyberneticus. Agora só um deus para nos salvar."

O conceito de ciborgue se define na utilização de tecnologia artificial e mecânica para aprimorar aspectos e limitações humanas. Em alguns casos como em pessoas com deficiência ou em cardíacos esta técnica pode ser um grande alívio, contudo ela não se resume a isso. Ela gera uma discussão "até onde vai o ser humano?" A conectividade mencionada anteriormente já é um efeito da cibernética. Os celulares se tornaram a memória do homem, a lente de aumento, a fita métrica, nosso mundo está habitado por criaturas que só existiam na ficção: a realidade aumentada em Pokemon Go é outro exemplo de que o celular está se tornando algo de simbiótico já não se vive sem e cada vez a tecnologia imita o humano. Mais atualmente a inteligência artificial causa outro desafio. O computador consegue criar imagens, animar fotos, criar textos, copiar vozes. Pe. Elizeu indagou: "Até que ponto está inteligência artificial pode ser chamada de inteligência?" E nos lembrou: a assim chamada inteligência artificial não pode ser desta forma nomeada visto que ela não cria como o ser humano, mas copia e depende de um comando de um ser hunano para poder realizar a tarefa para qual foi programada. O ser humano pelo contrário, não foi programado e uma vez aprendido um novo conhecimento não necessita de comandos para repetir a ação.

Pe. Elizeu nos disse que por isso o Papa Francisco assumiu o termo Antropologia Integral. Na Laudato Si', Francisco apelou para que a tecnologia não fosse a única sabedoria a ser contemplada pelo homem. O homem moderno admirado pela técnica elevou a ciência como único saber plausível e sensato, transformado outros saberem em psudo-sabedorias como as sabedorias dos povos antigos e originários e a própria filosofia e teologia. A Antropologia Integral deve assumir os avanços da Antropologia como ciência levando em conta as sabedorias antigas, as artes, a cultura, a filosofia e a teologia.

O ser humano como ser integral e Ser-no-mundo é um ser que habita um planeta. O Papa Francisco nos relembra que somos todos habitantes de uma mesma casa: a Casa Comum. Por isso, interesses individuais não podem colocar a vida da humanidade e dos outros seres vivos em risco. É preciso cuidar da Casa Comum e de seus recursos que assim como o homem são finitos. 

Tendo as ricas reflexões do Pe. Elizeu é possível concluir que tanto as autocalamdas "inteligências artificiais" como a cibertecnologia colocam o homem na trilha da frase de Heidegger "o ser humano renunciou seu ser". Cada vez mais o ser humano quer renunciar sua condição de criatura e passar a ser criador. Esta questão abre discussão para outros assuntos como a engenharia genética, clonagem, reprodução artificial, entre outros. Os avanços tecnológicos e as demandas criadas pelo mercado geram um padrão de vida insustentável para os recursos em nosso planeta. Estes fenômenos possuem uma visão puramente imanente do homem. Como se o ser humano fosse apenas um conjunto de órgãos ou como alguns dizem "a máquinas mais perfeita". O ser humano não é apenas organismo. Ele é também espírito, ele é transcendência, ele é criatura. Sua finitude, sua angústia e seus sofrimentos causados pelo nihilismo podem ser superados pela Fé, pois Jesus Cristo fez o caminho contrário. Ele tornou-se criatura para nos ensinar o caminho da vida: "Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância".(Jo 10. 10) e "Ele, embora sendo imagem de Deus, não considerou extorsão o ser igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo tomando a imagem de servo, tornando-se semelhante aos seres humanos, e, em aspecto, sendo encontrado como ser humano, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, morte de Cruz. Por isso, Deus o exaltou (...)" (Fl 2, 6-9). Feito do barro o ser humano aprende a viver no mundo. Ele um Ser-no-mundo é um ser-para-a-morte, contudo, apesar de morrer, ele é também um ser para a eternidade. A vocação do homem à grandiosidade, a sua semelhança com Deus não é querer ser deus, sendo assim guiado pelo orgulho, mas assemelhar-se a Ele em sua humildade redentora. Humildade é outra palavra que vem de "humus", mesma raiz de "homem". A humildade está mais associada a essência do homem que o orgulho. A humildade de Jesus ensina que por ela o homem viverá sua vocação de criatura eleita, de filho obediente, para alcançar a plenitude da vida. A humildade guia o homem para o amor. O amor é uma expressão que, segundo Levinas, faz homem transcender o ser-para-a-morte para o ser-para-o-outro. O Amor nos leva a enxergar o irmão e assim olhar que existe algo além do ser-em-si. Há um ser-para-o-outro. Este outro abrange tudo que não sou "eu": os outros homens, as outras criaturas, o mundo em que vivemos e Deus, o totalmente-outro. A tecnologia que foi um presente de Deus ao homem deve ser usada para o bem da criatura e seu desenvolvimento integral sem pôr em risco a vida do ser humano, das outras criaturas, da Casa Comum e da Família Humana. Desta forma, se concretiza aquilo predito por Heidegger: "Agora, só um deus para nos salvar." De fato, somente Jesus Cirsto, Deus feito homem, para salvar a humanidade e toda a criação.